com Alessandra Lopes
Melhor estar vivo e louco, do que estar morto em vida – Ana Tioux, a ex-MC do Makiza,
que se tornou uma das rappers mais importantes do mundo, é um
verdadeiro veículo de mobilização social, política e cultural, não só em
seu Chile natal, mas no mundo todo.
E a moça ainda tem um público considerável nos E.U.A. – a pátria do “gangsta rap”,
estilo com o qual ela declaradamente não se identifica. Ouvir suas
canções tem sempre um sabor especial, pois a moça vivenciou com seus
pais o exílio num país estrangeiro para fugir da truculência da ditadura
Pinochet, retornou a seu país e presenciou a abertura política que veio
acompanhada de muitas contradições sociais e encontrou no rap um modo
de se posicionar no mundo. Tendo vivido processo político e social
semelhante, podemos nos enxergar em suas letras.
No último domingo, Ana se apresentou no
CCJ Ruth Cardoso, na zona norte de São Paulo e tive a oportunidade de
conversar com essa jovem e talentosa artista, e conferir de perto sua
visão de mundo:
Alessandra Lopes – Ana,
sabemos que seus pais viveram exilados na França, com quanto anos você
voltou ao Chile e também, com quantos anos você começou na música?
Ana Tijoux – Aos quinze mais ou menos. Comecei tarde na música, aos 19, 20 anos.
Alessandra Lopes – Que tipo de música você ouve e influencia em sua própria criação?
Ana Tijoux – Acontece
que parte de minha formação musical vem do que escutam meus pais, muita
música latino-americana, somos todos muito fãs de Chico Buarque, muito
folclore latino-americano, Ruben Blades, Inti-Illimani, Victor Jara, Mercedes Sosa, Los Olimareños do Uruguai…
Alessandra Lopes – Você tem contato com as diversas cenas do rap mundial? E o que você acha do gangsta rap?
Ana Tijoux – Sim, mas
nem tanto, porque é difícil estar em contato com todos. Sobre o gangsta
rap, eu, pessoalmente não gosto, porque não me identifica. Não o julgo,
porque creio que é o resultado de um sistema. O sistema constrói o
grostesco no gueto também, e parte desse grotesco também é como o
gangsterismo finalmente, construir inimigos entre as pessoas de um mesmo
bairro. Nesse sentido não o julgo, mas não me reconheço nele, porque
sinto que o inimigo é outro, não é o irmão da sua comunidade.
Alessandra Lopes – A música para você sempre foi uma força mobilizadora ou isso se intensificou em razão de questões sociais urgentes?
Ana Tijoux – Eu creio
que não só o rap e a música, creio que o papel de los músicos e
criadores em geral, é um papel de primeiro sensibilidade e de uma visão
de mundo, creio que temos a capacidade de olhar o mundo, observá-lo, e
sob esse ponto de vista de observação, se vai tecendo canções, então
creio que há um clichê com o rap, que o rap é combativo, enquanto Chico Buarque é extremamente combativo e não faz rap; Rubén Blades
é extremamente combativo e não faz rap. Eu creio que a música em geral,
é luta, mas também creio que há beleza na luta. Também é o abstrato,
também é fantasia. A música é livre e tem que ser livre sob este ponto
de vista.
Alessandra Lopes – Você está sendo uma espécie de madrinha do movimento estudantil chileno, como está sendo isso pra você?
Ana Tijoux – Olha,
madrinha me parece uma palavra grande demais, não é que eu esteja
fugindo da responsabilidade, tenho que ser responsável pelo que canto,
não sou porta-voz de ninguém, sou apenas uma musica, mas como disse Fela
Kuti, a música é uma arma, e estou numa posição muito interessante de
quem tem sensibilidade e pode falar do que acontece em meu país porque
nos afeta a todos como sociedade. E o que aconteceu com os estudantes,
esta revolução de um despertar social, também foi um despertar social
transversal, e nós músicos não estamos alheios a isso, somos parte de
uma comunidade, não só os músicos, mas também os políticos, os políticos
que recebem criticas, mas se critica não só aos políticos, mas se
critica um sistema completo que já não são democracias, mas são
ditaduras corporativas instauradas que nem sequer se tratam de direita
ou esquerda, mas de ambiciones políticas, que deixaram totalmente de
lado a necessidade de um povo, que é a educação, e que finalmente faz a
diferença entre um jovem que faz gangsta rap e outro que diz: eu faço
rap, mas faço música e o inimigo é outro. A educação muda totalmente o
ponto de vista sobre como alguém pode se construir na vida.
Alessandra Lopes – Você crê que essa postura crítica da juventude pode se disseminar por toda a América Latina?
Ana Tijoux – Sim,
porque eu creio que o que esta acontecendo no Chile é o que está
acontecendo na história do mundo também. E na historia da America
Latina, uma America Latina cheia de cicatrizes. Creio que todas as
ditaduras do cone Sul, Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, que foram
ditaduras mais ou menos paralelas, e nas quais houve um aparato político
da parte dos EUA, com intervenção direta da CIA, e nas quais as
torturas e politicas de choque que se estabeleceram foram as mesmas.
Então quando você viaja a um pais irmão como Argentina, Uruguai, ou
Brasil, você vê muitas situações que se repetem: linguagem de pobreza,
de desigualdade… o mesmo, ditadura, matar as pessoas que são contrárias,
torturar os vivos, deixa-los traumatizados, finalmente, matar uma
geração, não só matar uma geração, mas matar o sonho de uma geração, e
desse modo assustar ao resto da população e se estabelece então a
corporação e tudo se privatiza, a educação, a saúde e finalmente se
estabelece um sistema neo-capitalista liberal gringo no qual tudo é
privado, em que só o empresário e o patrão se beneficiam. Para mim esta é
uma linguagem latino-americana porque são as mesmas dores, são as dores
que atravessam a America Latina, pois é uma América Latina que tem
sangue, é como disse Galeano em “As veias abertas da América Latina”,
essa não é só uma luta contra este sistema, é uma luta que vem desde que
chegaram os espanhóis, os portugueses, é uma luta de descolonização das
corporações. E sob esse ponto de vista eu diria sim que é uma linguagem
latino-americana.
Alessandra Lopes –
Certa vez um grande jornal brasileiro mencionou em editorial que no
Brasil tivemos uma “ditabranda” pois a nossa teria sido menos violenta…
ao passo que destruiu o futuro destruindo a cultura e a educação. Me
parece que o estrago na educação do Chile foi semelhante.
Ana Tijoux – É o mesmo,
ao final, eu não creio em ditadura dura ou branda, se há um morto, ou
cem mil mortos, é igualmente grave. Não se pode contabilizar se foi dura
ou branda pela número de mortos. O problema é quando matam um sonho. E
matam uma geração, e matam o desejo de dizer: “eu como cidadã, quero ser
doutora no dia de amanhã, quero ser médica, quero ser astronauta, quero
ser bióloga, quero ser socióloga…”. Ter a capacidade de decisão, de
quem eu quero ser e como quero que meus filhos vivam e como quero que
seja minha casa. Não que me estabeleçam um sistema em que eu tenha que
ir a um colégio que eu não posso pagar até que se fechem as portas e
acabe trabalhando no McDonalds porque não tenho outra possibilidade. A
situação de violência foi a mesma, e quando se viaja a países irmãos se
percebe, um se reconhece no outro. Há algumas distinções mas um se
reconhece nessa viagem realizada graças à música, como com as dores, um
se reconhece nas dores do outro. Para mim esse despertar do Chile é um
despertar mundial, está ótimo, é necessário. Melhor estar vivo e louco
que estar morto em vida!
Alessandra Lopes – Que artista chileno você destacaria atualmente?
Ana Tijoux – Muitos, tem muita gente bem bacana agora, eu gosto muito de um velho, não é tão velho, tem a idade de meus pais, se chama Mauricio Redolés,
ele faz um rock-ska folclore, sei lá, uma mescla, e eu gosto muito de
seus textos, são bem ácidos, mas é muito bonito, muito belo.
Alessandra Lopes – Com que artistas brasileiros você gostaria de trabalhar?
Ana Tijoux – Bom isso é um clichê, mas Chico
(Buarque) para mim, é parte de minha história musical, Chico, eu sei
que é impossível, mas sempre o vi como mentor em termos de escrita,
creio que ele tem a capacidade de mesclar a beleza de letra e música,
essa sensibilidade, esse perfeito ponto de inflexão.